Nunca fomos deuses, sempre foi Exu
Quando falamos de ciência e tecnologia, tendemos a nos referir quase que automaticamente a autoridade, complexidade e capacidade de criação. Produzido na maior parte das vezes em ambientes de acesso restrito e por uma comunidade que possui ritos, linguagens e mitos próprios, o conhecimento científico é reconhecidamente um dos pontos fundamentais para que a sociedade moderna se sustente. Porém sabemos que nem todo mundo é aceito no clube da modernidade.
Afim de solucionar essa falta de acesso ao que a ciência produz é que surge a figura do divulgador de ciências, atividade que se expandiu durante o movimento iluminista com as grandes exposições públicas de ciência em praças e museus e se mantém até hoje como ponto crucial da percepção pública sobre ciência e tecnologia. Atualmente, a função tende a ser adotada por profissionais da comunicação que pretendem cobrir temas científicos ou por cientistas que querem tornar seus conhecimentos específicos compreensíveis para um público mais amplo.
Apesar de muito bem intencionados, profissionais da comunicação científica tendem a olhar para si mesmos como “arautos da iluminação” através de um mito bizarro, requentando uma percepção trazida do século XVIII e que, obviamente, envelheceu muito mal. Um exemplo claro da prepotência desenvolvida é a fala de William Laurence (jornalista científico do New York Times em 1930) ao descrever sua profissão: “Autênticos descendentes de Prometeu”. Segundo Laurence a missão dele e de seus colegas era a de “pegar o fogo do Olimpo científico e trazer para baixo, pro povo”. Apesar da fala em questão já ter quase um século, basta perguntar a um divulgador de ciência hoje a motivação que o leva a escrever seus textos ou gravar seus vídeos, postados em plataformas privadas de grandes empresas de tecnologia, que muito provavelmente você vai ouvir uma releitura do mito de Prometeu surgir com uma roupagem heroica, socialmente comprometida e em alguns casos, até mesmo como uma postura política. A manutenção desse espírito seria um fato lindo, não fosse pela falha grotesca em representar o que de fato a comunicação sobre ciência e tecnologia precisa ser nos dias hoje.
O primeiro ponto que me preocupa nessa comparação é que a história não acabou tão bem para Prometeu como os colegas fazem parecer.

Prometeu, entidade da mitologia grega torturada pela eternidade a mando de Zeus
Outra questão, essa muito mais grave, é a imagem que esse tipo de postura faz do público. Ao tratar as ciências e tecnologias como algo divino e o divulgador como esse ser que vai à torre de marfim, busca o conhecimento e trás em linguagem simples e acessível para o “público leigo”, estamos reforçando ideias distorcidas, como:
A ciência é pensada e realizada por seres fantásticos num ambiente alheio e isolado do restante da sociedade;
O publico é uma massa homogênea de ignorantes com um déficit cognitivo que só será sanado com a chegada do conhecimentos e técnicas do meio científico;
O processo de comunicação é feito de cima para baixo, com uma perda de informação considerável causada pelo comunicador para simplificar o conteúdo devido a uma falha cultural do receptor;
O comunicador não interfere no que é transmitido, sendo somente um mensageiro da comunidade acadêmica.
Esse tipo de postura além de reforçar relações de poder e estereótipos que nunca foram de interesse da população da qual os descendentes de Prometeu se dizem heróis, vai contra o que a própria comunidade científica tem discutido sobre sua forma de interagir e estabelecer trocas com os demais setores da sociedade.
No meio da encruzilhada que é a sociedade globalizada e devido à complexa rede de trocas e relações da qual emerge o conhecimento científico, profissionais da divulgação científica são cruciais. No entanto seu papel não é apenas informar, entreter ou mesmo educar pessoas. Nossa missão é para além disso tudo, mediar as relações entre os espaços de produção científica e tecnológica e o público, sendo capazes de provocar um debate informado e sensato sobre as questões éticas que emanam das práticas científicas e desenvolvimento tecnológico. Muito mais do que esbravejar que “ciência não é opinião” ou julgar o que é ou não considerado científico, nossa função é levar aos espaços coletivos a discussão sobre os desencadeamentos suspeitos e/ou ameaçadores no sistema de ciência e tecnologia, bem como em suas interações com o sistema político, com as forças militares e/ou com o mercado. A complexidade dessa tarefa demanda um registro de pensamento que nunca poderá ser abarcado numa tragédia grega como a de Prometeu.
Há quem diga que Hermes seria um bom substituto, uma vez que no panteão grego representa o mensageiro dos deuses. A troca se justificaria pela entidade ter as características de um trickster, arquétipo típico em mitos e termo que se refere a figuras que têm uma bússola moral ambígua, frequentemente quebrando as regras impostas e, em última análise, produzindo resultados positivos. Eu no entanto, considero que se queremos buscar um registro de pensamento que dê conta de representar as relações que pretendemos estabelecer enquanto sociedade com o processo de produção do conhecimento, precisamos sair da Grécia e voltar para o real berço da ciência e tecnologia. Na porta de cada barracão, vindo para o Brasil em porão de navio, temos o candidato perfeito. Um “trickster” muito mais interessante, experiente em inspirar mediações complexas entre mundos: O senhor do incapturável, Exu.

Exu, por Ayodê França
Com nome vindo do iorubá Èsú, reconhecido também como Eleguá, Elegbara ou Lebá, Exu é o orixá da comunicação e da linguagem, senhor das encruzilhadas e, segundo a filosofia mantida pelas religiões de matriz africana no Brasil, “aquele que te ensina a estar sempre vigilante”. Na metafísica afrocentrica, Exu é o orixá mais próximo dos humanos e o mensageiro entre eles e as divindades, o que numa análise rápida e desinteressada poderia fazer com que fosse um equivalente iorubano de Hermes, porém sua relevância como registro para pensar a divulgação das ciências vai muito além disso.
O primeiro aspecto crucial é o ambiente epistêmico e metafísico onde surge o mito, o qual considera que “a tecnologia deve existir como um sustentáculo para a consagração do Homem e da Mulher em sua condição de ser”, como diz Abdias Nascimento ao tratar do avanço tecnológico na percepção pan-africanista. Esse simples deslocamento de perspectiva sobre o propósito do desenvolvimento tecnocientífico nos dá fôlego para pensar em como tratar das tecnologias por um aspecto menos determinista e pensar na ciência não como um repositório de milagres, mas como um processo de construção orientado por interesses. O próprio mito cristão da criação ex nihilo (a partir do nada absoluto) perde o sentido quando tratamos de ciências através do registro de Exu, uma vez que o mesmo vem de uma cosmogonia em que a criação não se dá contra o vazio, mas através dele por uma noção de fluxo e redistribuição da matéria, ilustrando lindamente o caos e o acaso como agentes da criação e, por consequência, do fazer científico, o que por tantas vezes optamos por omitir.
Exu é a oposição ao pensamento cartesiano ocidental, é o próprio movimento de transformação e recriação epistêmica.
João A. R. Neto, A pedagogia de Exu
A ideia de criação trazida por Exu é ainda uma noção do criar não como produto direto e automático da vontade de seres superiores, mas uma empreitada que demanda uma série de negociações, trocas e perdas, representando de modo bastante fidedigno a forma como entendemos atualmente o processo de desenvolvimento e apropriação das tecnologias. Essa epistemologia de Exu nos permite ainda encarar o mediador da comunicação não como uma figura passiva no processo, mas como alguém que possui agência, podendo a todo o tempo interferir nas relações de poder das partes envolvidas na troca de saberes a partir de sua percepção crítica dos fatos apresentados.
Segundo Yurij Castelfranchi, físico, sociólogo e comunicador de ciências ítalo-brasileiro, “comunicar ciência implica comunicar de forma crítica, situada, contextual e rigorosa ao mesmo tempo em que se busca fazê-lo de forma interessante, cativante, ágil e dentro dos vínculos frustrantes que a máquina de comunicação impõe”. Com Exu como fundamento, todos esses requisitos tendem a se tornar naturais no processo de comunicação. Hoje, enquanto vivemos um momento em que vivenciamos e relatamos ataques diários à ciência por diversas partes, a academia se vê pela primeira vez mais próxima dos oprimidos que dos opressores. É nessa condição de perigo que também vemos a potência em abrir mão da mania de desmistificar as coisas e, ao invés disso, “remistificar” elas enquanto comunicadores de uma ciência pública de fato. É a partir desse movimento que podemos resgatar a potência de todos os saberes e técnicas soterrados pela modernidade e produzir uma cidadania técnica também pautada pelo encantamento e ancestralidade.
Proponho portanto esse caminho como saída da nossa encruzilhada histórica. Olhar para Exu e assumi-lo como força motriz dos processos de conflito que vivemos entre humanos e não-humanos é passo fundamental para tratar da crise socioambiental através de um olhar realista. Em nosso momento, realismo e encantaria confrontam a filosofia eurocêntrica e cristã, se tornando sinônimos. Se queremos tanto assim “sair da torre de marfim” ou “furar a bolha”, então talvez devamos tirar a ciência e a tecnologia do Olimpo, colocá-las num alguidar e despachar na encruzilhada mais próxima. Assumir assim que nunca fomos deuses, sempre fomos Exu.
Texto publicado originalmente no blog do Instituto de Ciências Periféricas
Referências
Castelfranchi, Y. Para além da tradução: o jornalismo científico crítico na teoria e na prática. In: Los desafios y la evaluacion del periodismo científico en Iberomerica. Eds.: Massarani, L.; Polino, C. Santa Cruz de la Sierra, 2008. 128p.
Hilgartner, S. The dominant view of popularization: Conceptual problems Political Uses. Social Studies of Science, 20(3), 1990.pp. 519–539
Kawahala, E. “Na encruzilhada tem muitos caminhos- teoria descolonial e epistemologia de Exu na canção de Martinho da Vila”. Tese (Doutorado em Literatura) ”“ Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014. 209 p.
Merrel, F. Exu: Trickster by default. Trickster’s way. v. 2: n. 1, 2003. p. 1–31.
Nascimento, A. O quilombismo. 2 ed. Brasília/Rio: Fundação Cultural
Palmares; O.R. Editora, 2002
National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine. Communicating Science Effectively: A Research Agenda. Washington, DC: The National Academies, 2017. https://doi.org/10.17226/23674
Neder, R. A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia. Ricardo T. Neder (org.). Brasília: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina / CDS / UnB / Capes, 2010. 342p.
Nelkin, D. Selling science: How the press covers science and technology, New York, W.H. Freeman and Company, 1987.
Neto, J. A. R. A Pedagogia de Exu: educar para resistir e (r)existir. Revista Calundu, 3(2), 25. 2019.
0 comentários
Entre com sua conta ou cadastre-se para adicionar seu comentário.